sexta-feira

30 anos e 500 gatos

E um dia me barbeei e perdi todo meu menino. Fui dormir com vinte e poucos anos e acordei com quase trinta. Achei um fio branco no meio dos cabelos loiros, as costas resolveram reclamar por causa da mochila pesada da época do colégio e, veja só, ficar em casa assistindo um filme passou a ser mais tentador do que sacudir a carne Friboi na festa. 

E se com 20 anos levávamos a vida como Cio-Cio San de Madame Butterlfy, sempre prestes a enfiar uma espada no coração, aos 30 somos o Comandante Pinkerton, pois já enxergamos o final do continente, já dimensionamos o tamanho da tempestade e já enchemos a mala com o necessário pra sobreviver. Ainda vivemos dentro da ópera, mas já no segundo ato. 

Chegamos em casa com gripe e, sozinhos, limpamos e cozinhamos e arrumamos e tomamos conta de nós mesmos. E talvez pela primeira vez na vida sentimos medo de morrer sozinhos em casa cercados por 500 gatos. E esse medo faz com que a gente se sinta ainda mais vivos porque temos finalmente a percepção de que o tempo passa, e rápido. E mesmo que o tempo volte, ele jamais vai trazer de volta o que levou. 

Aos 30 fazemos a curva, queremos qualidade e não quantidade e fincamos a nossa bandeira no primeiro grande patamar. “Fazer 30 anos é como uma pedra que já não precisa exibir preciosidade, porque já não cabe em preços”, escreveu o Affonso Romano. 

A tatuagem das asas que fiz com 20 e poucos anos nunca teve tanto sentido. Pois agora é a hora do “maravilhamento” da vida, de ter a sagacidade de um infante e ser mais do que Che em luta. É a hora de eu ser apresentado a mim, esse estranho que eu conheço (?) tão bem.

segunda-feira

(...)



- Mas e então, o que você faz?


- Tento me exorcizar pelo poder da gramática.


- Como é?


Claro que o recepcionista da pensão não entendeu. Não por ele ser recepcionista, nem por ele ter mais de quatrocentos anos, mas porque só fazia sentido pra mim, essa coisa de se exorcizar pelo poder da gramática. Eu escrevia. Escrevia por uma estranha necessidade de ser ouvido. Só que essa necessidade só pode ser suprida quando o ouvinte compreende totalmente o que é dito. Por isso se conversa sozinho, escrevendo. Eu escrevia pra aliviar a cabeça, que desde sempre foi povoada por uma legião de dançarinos de frevo pulando sem parar, cada um falando uma cosia diferente. Um horror.


- Eu escrevo.


- Hum. É escritor então.


- Não senhor, não sou escritor. Eu escrevo, é diferente. Dizer que eu sou escritor sem ter lançado nenhum livro é muito pretensioso.


- Então eu coloco o quê aqui na sua ficha?


- Nada, ué.


- Não posso deixar em branco porque senão o dono da pensão não aceita porque vai achar que você não tem dinheiro pra pagar. Mas você tem dinheiro, não?


- É claro que eu tenho.


Mentira, eu não tinha um puto tostão no bolso.


- Então vou colocar escritor-que-ainda-não-lançou-nenhum-livro.


- Não coloca que sou escritor. A maioria das pessoas acha que escritor é vagabundo. É não fazer nada, acordar a hora que se quer, não trabalhar. E pior, não sofrer. Essa maioria acha que é só sentar a bunda numa poltrona confortável e escrever. Mas o senhor saiba que escrever é muito dolorido. Dói demais esse processo de nos enxergarmos e então desfocar a nossa história, sublimá-la e conseguir colocar no papel. Escrever é um processo de extrema dor, entrega, exaustão, e generosidade.


- Mas e então por que você não faz outra coisa?


- Porque eu não consigo. Escrever também é uma necessidade. Quase sempre eu tenho muita coisa na cabeça, sabe? É uma maneira de não explodir meu cérebro. E tem a necessidade de ser gostado também. Quem escreve espera que os outros leiam e gostem não só do que está escrito, mas principalmente do escritor. Escrevemos por uma estranha necessidade de sermos gostados, ao ponto talvez de achar que ninguém nunca vai poder nos rejeitar ou magoar porque, afinal, lá estão os nossos livros nas prateleiras das melhores livrarias do mundo. Eu estaria perto de Jean-Paul Sartre, seja por nome ou sobrenome. As pessoas olhariam pra prateleira e diriam “aqui temos Os Caminhos da Liberdade e ah, aqui está o novo livro de Julio Steffenon”. E assim eu perpetuaria a minha existência além de porta-retratos cheios de pó. E justificaria o trabalho que eu dou.


- Sei. Vou colocar aqui que você é engenheiro, ok?


- Ok.