segunda-feira

(...)



- Mas e então, o que você faz?


- Tento me exorcizar pelo poder da gramática.


- Como é?


Claro que o recepcionista da pensão não entendeu. Não por ele ser recepcionista, nem por ele ter mais de quatrocentos anos, mas porque só fazia sentido pra mim, essa coisa de se exorcizar pelo poder da gramática. Eu escrevia. Escrevia por uma estranha necessidade de ser ouvido. Só que essa necessidade só pode ser suprida quando o ouvinte compreende totalmente o que é dito. Por isso se conversa sozinho, escrevendo. Eu escrevia pra aliviar a cabeça, que desde sempre foi povoada por uma legião de dançarinos de frevo pulando sem parar, cada um falando uma cosia diferente. Um horror.


- Eu escrevo.


- Hum. É escritor então.


- Não senhor, não sou escritor. Eu escrevo, é diferente. Dizer que eu sou escritor sem ter lançado nenhum livro é muito pretensioso.


- Então eu coloco o quê aqui na sua ficha?


- Nada, ué.


- Não posso deixar em branco porque senão o dono da pensão não aceita porque vai achar que você não tem dinheiro pra pagar. Mas você tem dinheiro, não?


- É claro que eu tenho.


Mentira, eu não tinha um puto tostão no bolso.


- Então vou colocar escritor-que-ainda-não-lançou-nenhum-livro.


- Não coloca que sou escritor. A maioria das pessoas acha que escritor é vagabundo. É não fazer nada, acordar a hora que se quer, não trabalhar. E pior, não sofrer. Essa maioria acha que é só sentar a bunda numa poltrona confortável e escrever. Mas o senhor saiba que escrever é muito dolorido. Dói demais esse processo de nos enxergarmos e então desfocar a nossa história, sublimá-la e conseguir colocar no papel. Escrever é um processo de extrema dor, entrega, exaustão, e generosidade.


- Mas e então por que você não faz outra coisa?


- Porque eu não consigo. Escrever também é uma necessidade. Quase sempre eu tenho muita coisa na cabeça, sabe? É uma maneira de não explodir meu cérebro. E tem a necessidade de ser gostado também. Quem escreve espera que os outros leiam e gostem não só do que está escrito, mas principalmente do escritor. Escrevemos por uma estranha necessidade de sermos gostados, ao ponto talvez de achar que ninguém nunca vai poder nos rejeitar ou magoar porque, afinal, lá estão os nossos livros nas prateleiras das melhores livrarias do mundo. Eu estaria perto de Jean-Paul Sartre, seja por nome ou sobrenome. As pessoas olhariam pra prateleira e diriam “aqui temos Os Caminhos da Liberdade e ah, aqui está o novo livro de Julio Steffenon”. E assim eu perpetuaria a minha existência além de porta-retratos cheios de pó. E justificaria o trabalho que eu dou.


- Sei. Vou colocar aqui que você é engenheiro, ok?


- Ok.