terça-feira

+ inteligência e - grito

A princípio eu não ia falar sobre bullying, Bolsonaro, Preta Gil e toda essa merda que tem acontecido nos últimos dias. Mas resolvi escrever pra contar sobre o que eu fiz com o bullying que sofri, sendo que naquela época nem se chamava bullying. Aliás, não se chamava nada.

Era 1990 e alguma coisa quando eu estava no colégio, entre o que era chamado primeiro e segundo grau. Estudei em um colégio estadual e depois em um particular. Da terceira à oitava série, nesse colégio estadual, eu era gordo, usava um óculos com aro verde (que tenho guardado até hoje com o maior carinho), meus dentes eram tortos e eu não conhecia meu pai. Conheci ele pouco tempo depois que entrei nesse colégio, mas pra criar um laço de pai e filho e enxergar nele uma figura paterna que me protegeria, levou anos. Melhor, levou 16 anos. Ou seja, isso só se deu esse ano, em janeiro, quando eu não precisava mais dessa proteção, visto que já sou um homem. Mas enfim, eu tinha todas as características pra sofrer o chamado bullying. E além delas, eu sempre tive uns gostos meio peculiares. Eu gosto de ópera, por exemplo. Amo rock, mas também amo ópera. No meu armário tem uma camiseta dos Strokes e uma da Maria Callas. Enquanto meus colegas liam Coleção Vagalume, eu lia a biografia da Eva Perón e as poesias do Mário Quintana. Eu esperava ansiosamente pela aula de redação e vibrava quando tinha a aula de Educação Física porque, naquele tempo e naquele colégio, era permitido jogar canastra. Por isso eu não jogava futebol. Então eu era o gordo, o feio, o esquisito e o bicha.

E a única lembrança que eu tenho de ter me magoado durante o colégio foi num dia que a professora nos mandou fazer um trabalho para o Dia dos Pais, e eu ainda não conhecia o meu. Eu sempre dava esses trabalhinhos pro meu avô (quando ele faleceu, eu tinha mais de 20 anos e descobri que ele tinha guardado todos, dentro do cofre - saudade). Aí comentei com a professora que ia dar para o meu avô e ela disse que eu não podia, que tinha que ser pro meu pai. Na minha cabecinha de criança alguma coisa deu nó e eu só lembro de sair correndo do colégio chorando muito, e só voltei lá na companhia da minha mãe. E essa foi a única vez que tive que ir pro colégio na companhia da minha mãe, ou de quem quer que fosse (salvo as vezes que minha mãe foi chamada pela diretoria pra estar ciente que eu estava sendo suspenso ou expulso).

Até meus 14 anos tive que ouvir xingamentos porque eu era gordo e porque eu usava óculos. Também achavam estranho eu “não ter pai”. Nunca me xingaram a respeito disso, mas era outra estranheza minha que colaborava pra me deixarem de lado, junto com os musicais do Andrew Lloyd Webber, os livros e a canastra. Depois, conforme fui crescendo, começou com o fato de eu ser gay. Nunca fui afeminado e nem hoje sou, mas tem algumas coisas que se notam, até porque eu nunca fingi nada. Nunca fui lá bater uma bolinha com os guris pra pagar de macho. Nunca fiquei afim de guria nenhuma do colégio só pra dizer que eu era espada. E eu cometia o maior pecado do mundo: eu não jogava futebol.

Só que eu descobri que só eu podia me defender disso. A diretora era uma bocó. Minha mãe era ocupada demais e, naquela época, eu não via nela uma grande defensora, eu precisava de um pai. Mas eu não tinha um pai. Então o meu pai fui eu mesmo. E na realidade, nós somos o nosso próprio pai, porque as coisas dependem só da gente.

Então aprendi a me defender com as armas que eu tinha. Comecei a exercer uma liderança dentro da turma. Comecei a questionar os professores sobre coisas que em geral não eram questionadas. Comecei a me interessar por política e assim incentivar os professores e alunos a aderirem a greves. Comecei a mostrar um conhecimento sobre coisas que a maioria dos alunos daquela faixa etária não tinham (menos em matemática, que sempre fui péssimo). E assim ganhei respeito dos professores e, pouco a pouco, dos colegas. Entrei pro Conselho, sendo o representante dos alunos (acho que é tipo um Grêmio Estudantil - ainda existe isso?). Eu lembro de dois caras que mais me enchiam o saco. Tinham repetido de ano várias vezes, acho que eles tinham uns 17 ou 18 anos. Eu tinha 13. E todo o colégio já me respeitava, menos eles. Um dia, no recreio, eu estava sentado lendo e eles começaram com piadas e xingamentos, até que me mandaram um bilhete. Eu fechei o livro, peguei um isqueiro do bolso – porque naquela época eu já fumava escondido – e taquei fogo no papel. Não disse nada, não olhei pra eles, sequer li o bilhete. Só queimei ele. E não contei pra ninguém. Uma semana depois eles começaram a falar comigo de forma civilizada.

Quando conquistei o respeito geral nesse colégio, eu tive que mudar pra fazer o segundo grau. Então tudo de novo. Eu já não era mais gordo, meus dentes eram retos, eu tinha pai, mas ainda tinha o lance de ser gay. Nesse colégio a Educação Física era obrigatória e tinha que jogar futebol. Eu era, claro, o que sempre sobrava quando iam escolher os times (você que tá lendo isso e se identifica, dá um apertozinho no peito, né?). Eu confesso que nesse colégio a coisa foi um pouco mais difícil do que no outro. Eu já era adolescente e daí tem todo aquele lance de ser aceito e ser desejado e poder desejar em paz. E era um colégio grande e elitizado, e eu nunca fui rico. Então oba, mais uma coisa pra me discriminarem! Mas oras, se quando eu era criança não precisei da minha mãe, não era agora que eu ia precisar. E respeito se impõe em qualquer lugar, quando se tem coisas honestas a serem mostradas. E eu segui a mesma tática do outro colégio, mostrando quem eu era honestamente. Eu ria de mim mesmo no futebol, eu questionava os professores, eu lia no recreio, eu fazia tudo que me desse vontade. E assim passei os 3 anos do segundo grau muito bem. E hoje, os que me discriminavam no tempo da escola querem ser meus amigos. A diferença é que eu não quero ser amigo deles. Eu nunca quis, aliás. Eu só queria que me deixassem em paz. E continuo querendo isso.

O que eu quero dizer com tudo isso é que eu acho que hoje em dia fazem muito carnaval com esse tal de bullying. Ele existe, ele é importante, mas na minha época não tinha essa frescurada toda e tá todo mundo vivo. Alguns se mataram? Sim. Hoje também alguns se matam. Mais, até. A forma como tratam o bullying hoje é incentivando os que sofrem a contarem pros pais, professores e veículos de comunicação. Eu acho que não. Homofóbicos e preconceituosos em geral são como plantas. Eles precisam de oxigênio, sol e água pra viver. Se deixarmos eles no ostracismo, eles morrem.

Preconceito a gente combate com cultura e inteligência, não com grito. Deixem o deputado achar que namorar uma negra é promiscuidade. Deixem ele com saudade da ditadura. Deixem ele quieto. Deixem ele e tantos outros quietos. O agressor, até não ver a vítima louca, não para. Então não enlouqueçam. Combatam preconceito com inteligência. E deixem eles sem ar, porque um dia eles vão secar e morrer. E daí, quem sabe, vão pedir pra você aceitar eles no Facebook.