terça-feira

Pai, avô e um cheiro gelado

Pra mim a morte sempre teve um cheiro gelado. As pessoas que sentem o gosto das cores talvez entendam esse cheiro gelado que eu falo.

Eu tive um “pai de criação”, digamos assim. Amigo da minha mãe, ele me conheceu quando eu tinha 4 anos. E como conheci meu pai biológico só aos 10 anos, a relação de pai e filho eu realmente tive com ele. Se chamava Pedro, tinha quase dois metros de altura e um coração maior que isso.

Ele que me ensinou a me barbear, teve AQUELAS conversas comigo e tudo o que um pai faz, com o plus de não ser meu pai biológico e assim permitir que eu fumasse e bebesse quando ainda não tinha idade pra isso. Eu sabia que se um dia eu caísse, ele ia estar lá pra me levantar. Sabia que se eu vencesse, ele estaria na primeira fila pra me aplaudir. E aquela sensação de proteção e calor se desfez com um telefonema da minha tia. Eu estava trabalhando, e por volta das 16 horas ela ligou dizendo que o Pedro tinha passado mal e que ela ia me buscar. Ali eu já entendi tudo.

Durante todo o tempo de velório, eu lembro de não ter chorado muito e nem cheguei muito perto do caixão. Mas eu sentia uma tristeza absurda, e bem por causa dessa tristeza eu tinha impressão que o Pedro ia chegar ali a qualquer momento pra estar comigo. Obviamente, ele não chegou.

Quando ele foi cremado, carreguei o caixão para a esteira e sem querer chutei o forno, que é de zinco. O barulho parece que me despertou, e ali naquele instante, enquanto o caixão do meu pai de amor ia embora, eu percebi que um pouco da minha vida ia também. Fui pro estacionamento, sentei num banco e fiquei chorando ali por mais de uma hora, sem permitir que ninguém me encostasse ou falasse comigo. Tive vontade de não sair nunca mais dali, porque eu sabia que quando eu parasse de chorar e voltasse pra Caxias, minha vida seria outra. Minha casa seria outra, a casa dele seria outra, minha mãe seria outra.

Não foi a primeira vez que eu me senti sozinho, mas foi a primeira vez que eu me senti abandonado. Ninguém mais preencheria esse vazio que ele deixou. Às vezes quando tenho muita saudade, eu leio as cartas e os e-mails que ele me mandou e sinto falta de quando eu tinha vinte e poucos anos e ele estava comigo, e eu achava que tudo ia ficar sempre bem.

Depois do Pedro, meu avô morreu alguns anos depois. Meu avô também foi um pouco meu pai. Tinha uma figueira no quintal da minha casa que meu avô me deu, onde eu passava as tardes lendo gibis e comendo figos. Ninguém assava churrasco como meu avô, ninguém tinha os olhos tão azuis, ninguém era tão doce e tão vencedor quanto ele. Mas ao contrário do Pedro, quando meu avô morreu eu senti um certo alívio, porque ele estava doente há muito tempo. Mas a sensação de abandono veio novamente. Minhas duas referências de homem tinham ido embora e isso parece que era um aviso: vire-se! E eu me virei como pude.

Penso neles diariamente. Sinto saudade todos os dias. A tristeza, a sensação de abandono e a raiva passam. A saudade não passa nunca. Mas eu sigo em frente, e feliz. Só que às vezes bate uma saudade que eu tenho vontade de me amputar inteiro pra ver se ela passa.

Hoje é um desses dias em que eu tenho saudade da minha infância na figueira. Do meu avô indo me buscar no colégio dirigindo um Dodge azul e usando um terno de linho. Do Pedro me levando pro mar e me dando cigarros escondido da minha mãe.

Saudade de quando eu não sabia que a morte tem esse cheiro gelado.