terça-feira

Vinte e sete

Esse é meu texto de vinte e sete anos, o que conta e reconta minha curta e larga vida. E vou escrever com tinta vermelha como todos os ladrilhos do meu bairro, o vermelho do fracassado como o vinho ranço que bebem todos os bêbados.

Quanto me falta? Quantos amigos se retiraram do caminho. Quanto chorei e por que porra eu dei risada durante esses anos? Que música me fez morrer estando vivo? E que dia eu me barbeei e perdi todo meu menino?

Vinte e sete anos, vinte e sete frases, vinte e sete abraços a mim mesmo. Quando tocará o telefone me chamando aos gritos? O teatro, a literatura e a publicidade. O que forma e o que divide aquilo que eu sou.

Quatro letras tem meu apelido, como as quatro estações. Gabi em solidão, Gabi em idiotice, Gabi em homem forte, Gabi em ser humano, Gabi em felicidade. Quem agora me estenderá uma mão e umas graças à vida? Quem me dará uma saída, um “até logo”, um “te cuida”?

E minha mãe a quem eu devo tudo, e os silêncios do meu pai e meus irmãos que são irmãos muito além de todo o sangue.

A Lua está muito perto e não vi ninguém no meu bairro que tenha acreditado em mim, mas se eu minto não é pecado.

As boates e os mil cafés, meus amigos, meus adorados, muitos beijos para eles se por acaso passamos algum dia sem nos falar. Nosso grupo e as drogas lícitas e ilícitas e as risadas e os amigos e os amigos e os amigos e os irmãos que agora somos.

E meu violino guardado, minha família e amigos que ficam velhos e eu me perco nas suas rugas. Seus vícios. E meu avô que já morreu e eu levei o seu caixão voando por todo o enterro. E ainda lembro dos seus olhinhos azuis, iguais aos meus, me dizendo: “querido, se tu te sentes sozinho, eu te encontro algum amigo”.

E tive um pai que me curava de todo o engano e que me aninhava nos braços quando eu morria pela vida. E não pude me despedir dele. E me rasgo inteiro de saudade cada vez que penso nele.

E também tive outra mãe, uma tia sempre velha, que enchia minha barriga e meu coração de doces e de doçura.

Wilde, Hemingway, Lispector, Young e companhia... Os ônibus para a faculdade. Os desabafos e as ofensas e as vitórias para sempre. As óperas e o rock, o pop e o silêncio. E o silêncio e o silêncio e os cigarros.

Risoto de gorgonzola e banana, as massas e as merdas e o ateísmo. E minha cabeça não assimila o que muda em um segundo o meu conceito de alegria.

Vinte e sete resumos. Vinte e sete maldições. Vinte e sete mil destinos que agora sei que não são meus e minha foto na carteira de identidade que não sou eu, mas um abismo.

Um te quero de algum. Um te desejo de outro. Um te adoro, um tchau e tantas e tantas e tantas despedidas. James Dean e Eva Perón, meus ídolos e meus fantasmas.

O som inconfundível da dor na minha garganta. E minha voz grave e meu gato que não entendia porque chorava junto a ele e o acariciava até dormir. Hoje ele existe somente tatuado na minha perna.

Meu discurso final perante o júri da vida vai ser improvisado, mas cheio de alegria porque eu vivi e não só passei o tempo. E com sorte não vou temer a morte, se essa me pega desprevenido.

Onde está meu passado e meu presente? Minhas músicas idiossincráticas? Quantos povos abandonei na porra da minha cabeça?

E que me perdoem meus insultos e minhas doenças e meus agravos. E que algum dia todos saibam que eu quis, que eu fui corajoso e que eu amei. E que todo o resto não teve a menor importância.

Vinte e sete livros bons, vinte e sete aparições em minha vida, vinte e sete memórias tão privadas, somente minhas. Porque ninguém pode entrar nos buracos da minha alma, nem na alma de ninguém.

Cada qual tem o seu mundo, e com isso acabo. Mas não se vão ainda, porque ainda há mais perfumarias.

Isso é somente um primeiro esboço. Completar talvez me interesse, mas se não, está acabado, pois vou estender a roupa que agora é o que mais me importa.

Então até amanhã. Vinte e oito, vinte e nove, trinta madrugadas. Me despeço com um beijo. E agora sim vou estender a roupa, pois não quero estar pelado porque morro de medo que todo mundo me veja por dentro.